sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Como não te sonhar?

Às vezes quando, abatido e humilde,
A própria força de sonhar se me desfolha e se me seca,
E o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos,
Folhei-os então,
Como um livro a que se folheia e se torna a folhear
Sem ler mais que palavras inevitáveis.

É então que me interrogo sobre quem tu és,
Figura que atravessas todas as minhas visões demoradas

De paisagens outras,
E de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.

Em todos os meus sonhos
Ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas.

Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus,
Terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade,
O teu corpo essencial descontornado para planície calma
E monte de perfil frio em jardim de palácio oculto.

Talvez eu não tenha outro sonho senão tu,
Talvez seja nos teus olhos,
Encostando a minha face à tua,

Que eu lerei essas paisagens impossíveis,
Esses tédios falsos,
Esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços
E a gruta dos meus desassossegos.

Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos
Não são o meu modo de não te sonhar?

Eu não sei quem tu és,
Mas sei ao certo que sou?

Sei eu o que é sonhar
Para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho?

Sei eu se não é uma parte,
Quem sabe se a parte essencial e real, de mim?
E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade,
Eu um sonho teu e não tu um sonho que eu sonhe?

Que especie de vida tens?
Que modo de ver é o modo como te vejo?
Teu perfil?

Nunca é o  mesmo, mas nao muda nunca.
E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba o que sei.

Como não te sonhar?


Nossa Senhora do Silêncio (Livro do Desassossego) 
Bernardo Soares - Heterônimo de Fernando Pessoa.




















Como não te sonhar?

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